top of page
Search

Um estudo sobre a persona

  • Writer: Carla Albano
    Carla Albano
  • Jan 28, 2023
  • 14 min read

Quando chamei seu nome na sala de espera, Gabi se aproximou de forma muito tímida e, num tom quase inaudível disse: “sou eu, mas eu nunca ‘fiz’ psicóloga”. Eu disse que poderíamos falar disso dentro da sala e ela abaixou a cabeça e me acompanhou. A dificuldade em me olhar nos olhos, que notei logo no primeiro instante, ainda permaneceria por algumas sessões. Com a bolsa no colo, ela disse que estava lá porque tinha problema. “Que tipo de problema?”, indaguei e ela afirmou que tinha problema até para saber qual era o problema mas de uma coisa ela tinha certeza: ela não era normal. Depois de algum tempo de silêncio, disse que todos nós tínhamos problemas e ela poderia usar aquele momento para falar um pouco mais sobre aquilo que a incomodava. Ela pareceu se sentir mais à vontade e disparou: “Eu sou esquisita mesmo. Eu tenho problema. Tenho muitos pensamentos negativos, tudo de pior sempre acontece comigo”.

Corri os olhos pela ficha de inscrição para procurar algo que me ajudasse a conhecer melhor Gabi. A primeira informação era de que Gabi tinha 30 anos e era professora do ensino médio. Esses dados não combinavam com a imagem que tinha diante de mim, a de uma menina franzina e delicada, que nem parecia ter 18 anos. Então perguntei:

- “Quer dizer que você é professora?” e ela respondeu que era mais ou menos.

- “Como assim, mais ou menos professora?”

- “É que eu estou de licença e, na verdade não sou professora, sou temporária.”

- “Mas temporária também é professora”, observei.

- “É que eu nunca dei aula direito. Os alunos não acreditavam que eu era professora, falavam que era “pegadinha” e não me respeitavam. Eles ficavam fazendo bagunça no fundo da sala e me ignoravam. Tinha só uns dois ou três (alunos) que ficavam mais perto e prestavam atenção no que eu falava mas acho que esses tinham pena de me ver naquela situação. Ainda bem que estou de licença, não aguentava mais trabalhar lá.”

E foi então que Gabi contou que tinha sido afastada do emprego porque havia desenvolvido um linfoma no pulmão que media quase oito centímetros, descoberto há dois meses. Estava começando a fazer quimioterapia e ainda não sentia muitos efeitos colaterais do tratamento. Notei que, ao falar sobre sua doença, Gabi adotava um discurso mais articulado, usava termos técnicos com familiaridade e demonstrava uma segurança que não era notada nas ocasiões em que o tema girava em torno de suas questões pessoais ou familiares.

Gabi disse que, a partir da descoberta da doença, tudo mudou para melhor. Ela ficou livre de trabalhar na escola municipal e ainda ia receber uma pensão pelo período que ficasse em tratamento. No âmbito familiar, a mãe e as irmãs passaram a se organizar para levar Gabi ao hospital e fazer o serviço doméstico. Como Gabi ia receber a pensão, poderia sustentar a casa com seu dinheiro, tornando desnecessário que a mãe procurasse trabalhos eventuais para completar o orçamento. Aliás, segundo Gabi, a mãe sempre teve muitos problemas de saúde, o que a impedia de desenvolver uma atividade regular: “Antes minha mãe fazia uns bicos, de fazer faxina ou olhar criança dos vizinhos, mas só quando faltava comida em casa.”

Com o surgimento da doença, a mobilização familiar ao seu redor e os cuidados maternos fizeram Gabi constatar, pela primeira vez na vida, que a família se importava com ela.

Desde pequena, Gabi achava que ninguém gostava dela e se lembra de ter ouvido sua mãe dizer várias vezes que não sabia por que ela havia nascido. Perguntei, então, como Gabi se sentia em relação a isso e ela diz que sempre teve muita raiva de tudo, mas não sabia definir ao certo o que lhe causava esse sentimento: “tenho raiva do meu cabelo cair, tenho raiva dos meus pais brigarem, tenho raiva de não ter namorado, tenho raiva da vida, queria ser invisível.” Percebi que, nesta conversa, Gabi denominava de “raiva” qualquer sentimento desconfortável e que, na verdade, apresentava enorme dificuldade em estabelecer relações mais complexas entre a realidade e seus sentimentos. Quando dizia que estava sentindo apenas raiva, Gabi expressava, a meu ver, tristeza, mágoa, medo, indignação e, talvez, raiva também mas parecia não dispor de recursos para discriminar seus sentimentos.

Sobre sua mãe, dizia que sempre foi muito distante, muito seca e se ressentia por ela fugir do contato físico. Às vezes achava que a mãe gostaria que ela tivesse nascido menino. Outras vezes achava que a mãe não queria ter filhos e tinha raiva por ela ter nascido primeiro. Dificilmente conseguia dizer de onde vinham tais impressões e, como não podia explicar, afirmava simplesmente que ela se sentia estranha por pensar assim. Quando pedia que ela me explicasse, por exemplo, o que era “ser uma mãe muito seca”, a resposta vinha de uma forma desconexa: “acho que é porque ela não gosta de homem, parece que já teve problema com homem”. E o que isso tem a ver com você? “É mesmo. Ah, então eu acho que ela não gosta de gente”.

Fui percebendo que Gabi tinha dificuldade em elaborar o pensamento e argumentar. Cada vez que eu tentava estabelecer uma linha de raciocínio, ou ela se esquivava, alegando que achava isso ou aquilo porque tinha problema, ou Gabi me questionava o que seria correto ela pensar sobre determinada situação, na expectativa de que eu oferecesse um modelo de compreensão da realidade.

No decorrer dos atendimentos, comecei a trabalhar com a hipótese de que Gabi tinha questões relativas à estruturação do ego, mais especificamente ligadas à constituição da persona.

A adoção do termo persona, em Psicologia Analítica, foi inspirada na máscara utilizada pelos atores de teatro da Antiguidade. “Ao colocar uma máscara, o ator assumia um papel específico e uma identidade dentro do enredo dramático, e sua voz era projetada através da ‘boca’ recortada no rosto da máscara.” (STEIN, 2005, p.101).

De acordo com Jung, apesar de parecer uma escolha exclusivamente individual, a persona é um segmento da psique coletiva, como uma “máscara que aparenta uma individualidade, procurando convencer os outros e a si mesma de que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel, no qual fala a psique coletiva.” (JUNG, 1987, §245 p.32).

O autor afirma que, no fundo, a persona nada tem de real, representando um compromisso entre indivíduo e sociedade acerca daquilo que cada um parece ser em termos de nome, título, ocupação, forma de se vestir etc. Significa a “pessoa-tal-como-apresentada” e não a “pessoa-como-real”:


A persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo. (JUNG, 1987, §305 p.68)


Por outro lado, Jung (1987) afirma que seria incorreto dizer que não há nada de individual na escolha e definição da persona. Embora a persona possa estar frequentemente identificada com aquilo que se conhece do ego, a verdadeira individualidade pode se fazer presente de forma indireta, com representação de conteúdos do si-mesmo inconsciente, que nunca fica totalmente reprimido.

Stein (2005) afirma que a persona é a pessoa que passamos a ser como resultado da cultura, educação e adaptação ao meio físico e social. Assim, uma pessoa pode assumir diferentes personas, em diferentes ocasiões e fases da vida. A persona é uma possibilidade de ser em relação a um determinado grupo social, é a capacidade de assimilar um papel social. Por meio da persona, o indivíduo é aceito em um ambiente, como forma de adaptação ao mundo externo.

O autor explica que a persona pode mudar com o tempo, fazendo surgir novas maneiras de se relacionar com a realidade:


O ego competente enfrenta cada um desses desafios de adaptação com alterações apropriadas no conceito de si mesmo e na apresentação que faz de si mesmo através da persona. As pessoas pensam diferente sobre si mesmas, vestem-se diferentemente, cortam o cabelo de maneira diferente, compram diferentes espécies de carros e de casas, dependendo de sua idade, estado civil, classe econômica e social, e preferências do seu grupo de iguais. Tudo isso é refletido em mudanças na persona. (STEIN, 2005, p.110-111)


O desenvolvimento da persona é marcado por um conflito no ego que envolve a individuação (tornar-se livre, único e individual) e a conformidade social (ser aceito e querido pelos outros). É preciso adaptar-se às exigências culturais e coletivas sem deixar de ir em direção ao si-mesmo. As dificuldades na equação entre a persona, ego e o si-mesmo inconsciente é comentada por Jung (2006):


A construção de uma persona coletivamente adequada significa uma considerável concessão ao mundo exterior, um verdadeiro auto-sacrifício, que força o eu a identificar-se com a persona. Isto leva certas pessoas a acreditarem que são o que imaginam ser. A “ausência de alma” que essa realidade parece acarretar é só aparente, pois o inconsciente não tolera de forma alguma tal desvio do centro de gravidade. (JUNG, 1987, §306 p.69)


Segundo Stein (2005), até a idade adulta espera-se que ego e persona já estejam suficientemente desenvolvidos para “que as necessidades duais do ego de independência e de relacionamento sejam satisfeitas, ao mesmo tempo que a persona procedeu a uma adaptação suficiente para permitir ao ego viver no mundo real.” (STEIN, 2005, p.107).

No caso de Gabi, apesar de seus 30 anos, o conflito entre a exigência de adaptação externa e a necessidade de individualizar-se parece não ter sido estabelecido de forma importante, o que faz acreditar que há uma falha no desenvolvimento da persona desde as primeiras relações. Sua narrativa sobre as experiências vividas demonstra uma falta de noção do seu ambiente e daquilo que a coletividade poderia espera dela. Talvez daí venham as afirmações freqüentes no sentido de ser esquisita, sentir-se estranha ou ter problemas. Em diversas ocasiões Gabi demonstrou que carecia de modelos de comportamento e de pessoas que lhe inspirassem uma forma tida como “normal” de viver. Um exemplo disso pode ser observado na sua descrição de sua relação com o ex-namorado.

Desde as primeiras sessões, o tema do relacionamento amoroso foi evitado sob a alegação de Gabi de que o assunto lhe fazia chorar e era muito difícil de ser abordado. Com o tempo começou a descrever o relacionamento com Edu, dizendo que havia perdido a única oportunidade de se casar. Não entendi o motivo pelo qual era a única pessoa com a qual ela poderia se casar e ela afirmou categoricamente que as pessoas só tem uma chance de encontrar um companheiro e ela havia perdido a dela. Mais uma vez questionei por que ela não poderia encontrar outra pessoa e percebi que ela voltava a afirmar que todas as pessoas tinham apenas uma única chance de encontrar um amor. Notei que podia haver muita idealização nas expectativas de Gabi quanto ao relacionamento amoroso, fazendo com que ela parecesse uma princesa de contos de fada. Mas ela mesma não fazia qualquer distinção entre uma relação com bases mais realistas e suas expectativas fantasiosas. Para ela, era como se o mundo fosse mesmo uma história infantil e seu destino fosse perder o príncipe encantado. Neste sentido, Gabi não trazia questões que envolvessem um conflito entre a adaptação de seus desejos, de sua maneira de ser, aos valores sociais ou familiares. Era como se, no aspecto amoroso, diante da falta de vivência e reflexão pessoal, tivesse aleatoriamente absorvido um modelo da ficção sem ter necessariamente um vínculo com o local ou o tempo em que vive.

Para Gabi, as coisas pareciam acontecer simplesmente, sem qualquer relação de causa e efeito ou um princípio organizador. Sentindo a falta de condições de entender o mundo exterior, repetia que tinha medo de olhar as pessoas nos olhos, de falar com pessoas que encontrava no ônibus ou no hospital que freqüentava para tratamento. Em resumo: parecia faltar persona até para dizer “bom dia” ao vizinho sem se sentir desajeitada e, por vezes, até ameaçada. Gabi se encaixa bem na imagem descrita por Jung como alguém que “nada sabe acerca da persona e que tropeça no mundo com as mais penosas dificuldades”. Sobre pessoas que não possuem uma persona desenvolvida, Jung (1987) explica que são “indivíduos que cometem gafes em sociedade, perfeitamente ingênuos e inocentes, crianças comovedoras, sentimentais enfadonhos...”. E mais adiante afirma que são pessoas que parecem precisar de um plano pedagógico, uma cartilha para crianças, para aprender o que a sociedade lhes pede e construir sua persona de modo conveniente. (JUNG, 1987, §316 p.74/75).

Diante disso, a questão que se coloca é: em que momento a persona começa a ser estruturada?

Stein (2005) observa que “o ego não escolhe deliberadamente identificar-se com uma determinada persona.” As crianças se esforçam para sobreviver no ambiente em que nascem, ensaiando atitudes e gestos dos pais, com o objetivo de adaptar-se, desde muito cedo. Para o autor, questões como o gênero e a ordem de nascimento são fatores importantes para a construção da persona e, aos poucos, as crianças vão aprendendo a se comportar e responder de forma apropriada, seguindo o exemplo de seus pais. A menina que imita a forma da mãe se vestir, provando suas roupas e usando sua maquiagem, está ensaiando a construção da persona. O autor observa que roupas e maquiagem são muito representativas da persona. Na adolescência, o modelo fornecido pelos pais é revisto e o desenvolvimento da persona fica mais complexo na medida em que passa a levar em conta, de um lado, os impulsos, fantasias, sonhos, desejos, ideologias que povoam o mundo interior e, de outro, “a pressão dos iguais no sentido da conformidade”. A identificação do adolescente com um grupo de iguais ajuda o adolescente a emancipar-se dos pais para alcançar a maturidade. (STEIN, 2005, p.108)

No mesmo sentido, Whitmont (2006) pondera que o primeiro padrão de formação do ego advém dos julgamentos de valor e códigos de comportamento transmitidos pelos pais da criança. Nesse momento inicial, as exigências do mundo se confundem com as exigências da família e o ego se confunde com a persona. No decorrer do desenvolvimento psicológico adequado, “temos que nos tornar conscientes de nós mesmos enquanto indivíduos separados das exigências externas feitas em relação a nós”, criando uma responsabilidade e capacidade de julgamento que não sejam obrigatoriamente idênticos aos padrões e expectativas externas e coletivas. O autor explica o que acontece quando esse processo de diferenciação falha:

Se essa diferenciação fracassar, forma-se um pseudo-ego: o padrão de personalidade se baseia na imitação estereotipada ou numa atuação meramente zelosa em relação ao papel atribuído coletivamente à pessoa na vida. (WHITMONT, 2006, p.140)


O pseudo-ego está sujeito a pressões constantes que vêm de dentro, e não tem meio de ajustar o seu equilíbrio precário; frequentemente, ele beira o limite da psicose. (WHITMONT, 2006, p.141)


Segundo o argumento de que a persona funciona como se fosse uma roupa, que podemos vestir ou despir em determinadas ocasiões, Whitmont (2006) também lembra que se pode vestir algo mais confortável ou mesmo ficarmos nus em alguns momentos. “Se as nossas vestes grudam em nós ou parecem substituir nossa pele é bem provável que nos tornemos doentes”. (WHITMONT, 2006, p.140)

Voltando à história de Gabi, podemos fazer o exercício de imaginar como se formou sua persona, a partir de sua memória dos tempos de criança. Quando mencionava sua infância e adolescência, não se referia à vivencia de conflitos com os pais. Dizia apenas que eles brigavam entre si, mas ela nunca interferia. Gabi parece ter crescido em um mundo particular, onde os pais não entravam e nem serviam de modelo a ser imitado. Contou que falava sozinha com pessoas imaginárias e tinha a fantasia recorrente de ser invisível: “eu imaginava que ninguém me via e passava dias sem falar com as pessoas. Minha mãe conta que me chamava e eu não respondia, como se estivesse mesmo em outro mundo”.

Com extrema naturalidade, contou que o pai passava dias fora de casa e quando chegava, não falava com ninguém e dormia onde estivesse: fosse no sofá da sala, no quarto ou no chão da cozinha. O pai passava dias sem tomar banho e tinha uma ferida na perna que nunca sarava. A mãe de Gabi é muito diferente fisicamente dela, a ponto de ninguém acreditar que são mãe e filha, e esse é mais uma razão pela qual Gabi se sentia estranha. Gabi chegou a afirmar que, na sua colação de grau foi “um sufoco” para tirar foto com a mãe, explicando que elas tiveram que ficar muito próximas uma da outra e isso era muito esquisito porque não era comum ter contato físico com sua mãe. Mesmo contando que a mãe a criticava, a agredia fisicamente e não se importava com ela, Gabi não demonstrava raiva. Parecia resignada, como se não conhecesse outra forma de ser tratada.

Sobre sua aparência, mesmo antes de ficar doente, Gabi se sentia feia e desajeitada. Não gostava de seu cabelo e de suas roupas e demonstrava um sentimento de profunda inadequação. Quando falou sobre sua adolescência, contou que durante anos não depilava as pernas, não penteava o cabelo e saia todos os dias com um macacão de sarja azul, igual àquele usado por trabalhadores de postos de gasolina. Dizia que queria parecer menino e ficava no meio dos garotos mais “zoados” da rua. No seu modo de ver, essa aparência cumpria a função de fazê-la passar despercebida diante do grupo, como se ninguém fosse prestar atenção nela pelo fato de “parecer menino”. Na verdade, ao contrário do que Gabi imaginava, a princípio, as pessoas se davam conta de que ela era uma menina e, mais, uma menina que não se cuidava, que não se parecia com as demais meninas. Assim, aos poucos, Gabi parece ter assimilado a persona da “esquisita”, que se confundia com sua própria noção de ego.

Hopcke (1995) enfoca o tema da falta de persona, explicando como lidar com o assunto durante um processo terapêutico. Segundo o autor, não é possível dizer para o paciente que lhe falta persona porque, se é uma coisa que ele nunca teve, como poderia ter consciência dessa falta? A idéia é que não se pode perder, ou proteger, aquilo que nunca se teve. O trabalho então, deve ser feito no sentido de deixar o paciente livre para, em terapia, ir experimentando diferentes possibilidades de persona, sempre tendo o cuidado de olhar a questão sob a perspectiva do papel social que está por trás da “escolha” de determinada persona. O autor denomina esse processo de “prática da persona”.

É interessante que a postura de Gabi em terapia me lembrou muito um caso clínico comentado por Hopcke (1995). Ao descrever seu paciente Carlo, o autor diz que a primeira impressão que teve do paciente era de que ele era tímido. Não conseguia fazer com que ele lhe retribuísse o olhar e percebia que o paciente fazia questão de colocar o cabelo nos olhos para evitar ser visto de maneira direta. O paciente descrito por Hopcke (1995) também falava muito baixo, de forma quase incompreensível. No início, o terapeuta pensou tratar-se de defesa do paciente mas depois acabou percebendo que Carlo não fazia a menor idéia de que se comportava daquela maneira e demonstrou ter gostado de ter sido confrontado com essa realidade. Segundo o autor, com meio sorriso no rosto, Carlo disse que nunca havia pensado naquilo antes.

Essa fala era muito comum em Gabi. Depois de um comentário ou uma simples pergunta sobre qualquer acontecimento cotidiano ela dizia: Nossa! Nunca tinha pensado nisso! E seus olhos brilhavam como se tivesse descoberto um novo mundo. De fato, não parecia que Gabi estava se defendendo de entrar em contato com determinado conteúdo. Ela se surpreendia com a possibilidade de haver outro jeito de se comportar ou de lidar com alguma situação.

A exemplo de Gabi, o paciente de Hopcke (1995), não tinha muita interação com seu pai e sua mãe de agia como se ele não tivesse vontade própria, arrastando-o pela mão sem perguntar a sua opinião sobre nada, escolhendo suas roupas e o que deveria comer. Pelo relato de Carlo sobre sua infância, o autor teve a impressão de que seu paciente era tratado como um animal de estimação, por seus pais.

No caso clínico relatado por Hopcke (1995), houve muito cuidado do terapeuta no sentido de não fornecer modelos para Carlo, embora o paciente insistisse em perguntar o que ele achava disso ou daquilo. Era importante que ele começasse a refletir e criar as suas próprias referências. Assim, as perguntas eram sempre devolvidas ao paciente de forma que ele passasse a desenvolver suas impressões, fazendo com que Carlo adquirisse consciência do que era seu e o que era do outro.

Para concluir a análise do caso de Carlo, Hopcke (1995) descreve as características da falta de persona:

to lack a persona is not simply to lack a kind of social acceptability or a certain savoir faire. Not to have developed a persona means not to have developed a self. Without walls or structure, there is no possibility of furnishing, of rooms, of interests, or of individuality.” (Hopcke, 1995, p.74/75)


Tradução livre: A falta de persona não é simplesmente a ausência de um tipo de aceitação social ou de um certo savoir faire. Não ter desenvolvido uma persona significa não ter desenvolvido um “si mesmo”. Sem paredes ou estrutura, não há possibilidade de mobiliar, de ter quartos, interesses ou individualidade.


BIBLIOGRAFIA


· HOPCKE, Robert H.. Persona: Where sacred meets profane. Boston & London: Shambhala, 1995.

· JUNG, Carl Gustav. OC VII/2 O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987.

· STEIN, Murray. Jung: O Mapa da Alma. Uma Introdução. São Paulo: Cultrix, 2005.

· WHITMONT, Edward C.. A busca do símbolo: conceitos básicos de Psicologia Analítica. São Paulo: Cultrix, 2006


[*] Nome fictício

 
 
 

Comments


Posts Em Destaque
Check back soon
Once posts are published, you’ll see them here.
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
  • b-facebook
  • Twitter Round
  • b-googleplus
bottom of page