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"Elis: perdoem a falta de abraços, os dias eram assim"

  • Writer: Carla Albano
    Carla Albano
  • Feb 6, 2017
  • 5 min read

Updated: Mar 15, 2021

Acabei de assistir o filme “Elis”. Já tinha visto a montagem no teatro e achei que, sabendo do roteiro, o filme não seria tão emocionante quanto o musical. Estava enganada. Elis sempre emociona. Ainda mais quando o filme mantém a voz original de Elis, com toda sua passionalidade expressa nas palavras das canções.

A cena final me levou a pensar, Elis era uma mulher cercada de homens. Silenciosamente, choram por ela: o pai, Romeu, o advogado Samuel, Ronaldo Bôscoli, Carlos Miele, Nelson Motta, César Mariano, Leny Dale e evidentemente os dois filhos. Nenhuma mulher, com exceção do olhar pedido da menina Maria Rita, que conviveu apenas quatro anos com a mãe. Onde estão as mulheres na vida de Elis?

É o pai que vem do Sul trazendo Elis pela mão, para fazer os primeiros testes no Rio de Janeiro. O pai como personagem recriado até pode passar a impressão de um pai cuidadoso mas, como se sabe pela história real, havia muita rigidez na família de Elis e a aceitação dela como cantora não foi fácil. No início de sua carreira, sempre rodeada de homens, Elis é julgada, criticada, lapidada, ensinada. A preparação para a entrada no mundo profissional também é a preparação para a entrada no mundo das regras, das leis, a entrada no sistema patriarcal. A obrigação dos contratos e do mercado, sempre em oposição à satisfação dos desejos, ao respeito à sensibilidade, tão necessários para manter viva a voz emocionada de Elis.

O trabalho e a necessidade de se firmar como cantora fizeram com que Elis tivesse que amadurecer cedo. Cantava desde os treze anos e precisava muito ser a melhor. O nível de exigência e a cobrança de perfeição foram endurecendo a menina Elis, que cada vez mais precisava se adequar para conseguir ser uma cantora respeitada. O episódio com o regime militar é emblemático. Elis falou o que quis durante sua turnê na França, ou seja, foi Elis sem se censurar e teve que se acertar com a crueldade do regime militar, o ápice da rigidez e da falta de respeito às liberdades individuais. E como foi dilacerante para Elis ter que simplesmente obedecer aos militares e cantar para aqueles que prendiam e torturavam seus amigos, seus colegas compositores, os artistas que ela admirava. Mais uma vez, a lei calando as emoções e as crenças de Elis. No filme, nota-se como ela sentiu na alma o olhar reprovador de Henfil e as vaiais da plateia. Elis era puro coração, um feminino pulsante e livre.

A única mulher que, além de Elis, tem um pouco de expressão no filme é Nara Leão. Aparece como antagonista, ou seja, é tudo que Elis não quer ou não pode ser. Delicada, sensível, mocinha de voz suave, banquinho e violão. Ela diz textualmente que nunca vai ser como ela e que seu canto é alto, emocionado, para fora.

Quem protege e acolhe Elis nos momentos mais difíceis é Leny, um bailarino. Dos amigos, o mais feminino, uma pessoa que traz um pouco colo materno a Elis. Ele a ensina a se movimentar com leveza no palco, ele a apoia nos momentos de insegurança. Perto do final do filme, há uma cena em que Leny conta para Elis como está se controlando quanto ao uso de drogas e bebida: “só enlouqueço à noite, assim consigo diminuir pela metade o tempo de loucura”. E Elis responde debochada: “Como assim, bicho, loucura com hora marcada?”

As referências de cuidado que Elis tanto precisava, a sensação de ser amada, de ser acolhida de maneira incondicional costumam ser vivenciadas nos primeiros anos de vida, quando o olhar materno apresenta o mundo ao bebê. Esse momento de cuidado primordial cria uma marca, um modelo interno de abrigo que será levado para a vida toda e será ativado em situações da vida adulta, diante de um perigo, em fases de crise. Não se nota que Elis teve a experiência de uma infância feliz, harmoniosa e isso pode ter causado uma sensação de desimportância nos momentos de crise.

A importância da Elis-mãe é mencionada inúmeras vezes e a gente percebe o quanto a maternagem preenchia de feminilidade a pequena Pimentinha. Na função de mãe, Elis se tornava gigante, como ao cantar, e parecia abandonar as armas com que se defendia do mundo patriarcal. A mãe Elis podia ser sensível, expressar sua fragilidade, sem medo das críticas. A artista Elis, ao contrário tinha que ser forte o tempo todo, mostrar-se segura e destemida no palco. Assim, dentro dela pulsavam a emotividade e o sentimento que tornavam suas interpretações magníficas. Do lado de fora a pressão dos militares, dos produtores, dos homens de sua vida que exigiam dela uma força desmedida.

O primeiro marido, Ronaldo Bôscoli, um “Don Juan” inveterado, não foi exatamente um porto seguro para a jovem gaúcha. Ao contrário, foi uma escola de sobrevivência na selva artística do Rio de Janeiro, exigindo de Elis um rápido amadurecimento. Mulher de gênio forte, Elis brigou muito com Ronaldo até entender que ele jamais seria o marido companheiro e pai de família que ela precisava. De mundo interno turbulento, já bastava o dela.

A relação com César Mariano parece ter trazido um pouco de conforto a essa conflituosa batalha entre o de dentro com o de fora, entre o feminino e o masculino, entre o lado yin e o yang da personalidade de Elis. O casamento com o doce César trouxe para Elis momentos de casa no campo, de volta a uma vida mais simples, onde o que importava era a família, os amigos, os discos e livros, e nada mais. Mas, depois de um tempo, a Elis pulsante pediu passagem: precisava cantar, não podia ficar estacionada na polaridade sensível, feminina, yin. O mundo dos palcos, da polaridade yang, também a alimentava, e ela precisava sentir-se forte e poderosa cantando.

A tensão entre os opostos é constante no processo de individuação e não deve ser eliminada mas, ao contrário, servir de base para a compreensão dos elementos importantes na vida de cada pessoa. O objetivo é permitir que os conteúdos sejam gradualmente integrados à personalidade, com um espaço harmonioso entre as polaridades. O que se busca é um equilíbrio dinâmico entre os mundos interno e externo, entre os aspectos femininos e masculinos, entre razão e sensibilidade. Elis, assim como Amy Winehouse, Maísa e tantas outras, foi engolida pela dificuldade em administrar seu mundo interno, diante da pressão externa. Não conseguiu ser mãe dela própria e dedicar a si mesma um cuidado e um acolhimento que talvez tivessem salvado a sua vida.

Ficha técnica: Data de lançamento: 24 de novembro de 2016

Duração: (1h 55min)

Direção: Hugo Prata

Elenco: Andreia Horta, Caco Ciocler, Gustavo Machado e outros

Gêneros: Drama, Biografia

Nacionalidade: Brasil

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