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Infidelidade feminina e individuação no filme "Os Belos Dias"

  • Writer: Carla Albano
    Carla Albano
  • Jan 25, 2017
  • 17 min read

Updated: Mar 15, 2021

Filme “Os Belos Dias”: Resumo

Dentista, aos 60 anos, Caroline acaba de se aposentar. Casada com Philippe, tem duas filhas e três netos. Recentemente perdeu sua melhor amiga com câncer de mama. Caroline ganha de uma de suas filhas a matrícula em um clube para idosos. Mesmo sem gostar da ideia, ela passa a frequentar o clube e se envolve com o professor de informática, Julién. Nos passeios com a turma, as conversas do grupo giram em torno das dificuldades do envelhecimento e ela vai se enturmando aos poucos. Na família, por outro lado, ela parece ficar entediada com o marido, os antigos amigos e observa as filhas e netos com um olhar distante.

Símbolos de transição

Em casa, Caroline olha demoradamente seu reflexo no espelho. Antes de sair dirigindo pelas ruas de uma cidade litorânea da França, ela parece se perguntar quem é essa mulher refletida no espelho? Ela não gosta do que observa no espelho. Está identificada com a casca, com uma embalagem que ela enxerga como algo deteriorado e sem vitalidade. Intelectual, de gênio forte, foi durante a vida toda respeitada pelo poder conferido por sua persona altiva. Ser dentista lhe dava autoridade, escudo protetor de suas características femininas. Ela não consegue demonstrar emoções, não aceita sua fragilidade emocional. Ela se sente humilhada quando alguém tenta cuidar dela.

Parada na entrada de uma ponte pênsil, vê as duas cancelas se abrirem à sua frente. A hesitação ao atravessar a ponte parece remeter à transição entre a recém-encerrada atividade profissional e a proposta de ocupar seu tempo livre no clube, pouco atraente aos seus olhos. Ela segue em frente. A ponte, para Caroline, pode significar a ligação com ela mesma, com seu inconsciente, mas que, para ser ultrapassada, vai obrigá-la a se deparar com seu vazio, com seus abismos.

Transições são sempre difíceis. É inevitável que ocorra angústia ou depressão na transição de um arquétipo a outro, até que a nova situação seja elaborada e a consciência ampliada. De acordo com Guggenbül-Craig (1980), a mulher contemporânea tem muito mais possibilidades arquetípicas que no passado. Hoje é possível que, além de mãe, a mulher desenvolva os lados heroína, companheira, amante, intelectual, entre outros aspectos arquetípicos. Segundo o autor, por volta dos cinquenta anos, o arquétipo do adulto começa a ser substituído pelo “senex” e nesse movimento o indivíduo pode vivenciar a chamada “depressão de transição”.

Ao entrar no clube, Caroline irrita-se com a jovem recepcionista que pede para ela trazer foto e atestado médico. Responde secamente que não sabe se vai ficar. Seus cabelos loiros presos em um coque conferem a ela um ar clássico que destoa dos idosos que jogam pingue-pongue perto da recepção do clube.

O atestado médico, a foto, o espelho. Tudo parece conduzir ao tema do envelhecimento. Ela não se identifica e não se conforma de estar na mesma situação daqueles idosos. Sua expressão facial traz uma mistura de estranhamento e negação.

A professora de teatro se dirige aos alunos com um tom infantilizado: “Vamos lá, meninos, relaxem!”. Pede que Caroline não se desculpe por ser bonita, por ser quem quem ela é e pede: “Caroline, encontre sua risada, queremos ver sua singularidade, vamos lá... ousadia!”. Sentido-se exposta pela professora, ela se levanta, recolhe seus pertences e sai da sala.

De volta à casa, Philippe, seu marido, pergunta a Caroline se ela está bem. Quando ela diz que fez teatro, ele se apressa a encorajá-la “Isso, você vai fazer novos amigos, arejar a cabeça”. Ela responde séria: “Eu fui humilhada por uma professorinha de 30 anos!”. E o marido: ” Merda... e eu perdi essa?”

O comentário do marido me faz pensar que essa seria uma rara oportunidade de vê-la perdendo a altivez. Parece que, ao se despir da persona de dentista, Caroline tenha tido a sensação de ter perdido a identidade, não sabia como se portar. Ela não se sente à vontade para encontrar sua singularidade, ser ela mesma, diante de desconhecidos, sem a proteção do jaleco profissional.

Caroline desligou-se de seu trabalho porque discutiu com a sócia mais jovem. Uma cliente da clínica insistia em fazer vários procedimentos de clareamento nos dentes e Caroline se recusou, alegando que não era pintora de paredes. A sócia ficou ao lado da cliente e Caroline decidiu sair da sociedade. Pode-se pensar que o excesso de vaidade de sua cliente confronta sua persona intelectual. Embora seja uma mulher muito bonita, ela não consegue dar importância à sua feminilidade, privilegiar a estética, a sensibilidade, a beleza. Caroline não valoriza seus aspectos yin, os traços femininos como a delicadeza, a passividade, o acolhimento. Ao contrário, ela está identificada com seu animus, masculino, agressivo, competitivo, racional: ela é uma profissional técnica e não uma pintora de paredes.

É evidente que o lado feminino e delicado de Caroline está na sombra e, portanto, em desacordo com a persona. A vaidade da cliente, a juventude da atendente do clube, da professora de teatro e da sócia dentista a incomodam muito. A integração entre sombra e persona depende da aceitação de aspectos que não pertencem à imagem ideal e por isso são sentidos como malignos.

Para escapar da pressão familiar, ela volta ao clube. Enquanto faz um cinzeiro na aula de cerâmica, a professora pergunta se está tudo bem e ela responde: “Não fale comigo como se eu tivesse três anos de idade!”. Qualquer tentativa de acolhimento parece desvalorizar sua racionalidade. O cinzeiro remete às cinzas de uma vida que já se foi. “Pelo menos é uma peça útil”, diz, bem ao seu estilo.

Quando sai da aula toda suja, encontra o professor de informática, que a conduz rapidamente para o elevador. Brincando com ela, diz que deixou vários recados no celular dela. Se arrumando no espelho, ela demora para notar a brincadeira, mesmo porque não tinha dado seu número para ele. Eles vão para um depósito e começam a se beijar. Saindo de lá, ela anda descalça à beira do mar e sorri ao ver um casal brincando na praia. O contato com a argila, os beijos de Julien e a brincadeira no elevador são indícios da jovialidade que começa a modificar Caroline.

O casamento de Caroline e Philippe

Philippe entende que Caroline está atravessando um período difícil. Ele tem a mesma idade dela mas parece mais conformado com o envelhecimento. Há um evidente descompasso entre os dois. Ela com as perdas recentes do trabalho e da melhor amiga, ele trabalhando normalmente. Caroline tem dificuldade de entrar em contato com suas emoções. No máximo, nota-se uma ponta de tristeza nos comentários irônicos que ela faz de si mesma quando menciona o excesso de tempo livre ou critica os outros idosos.

Na cena em que os dois estão tentando fazer funcionar a internet, ambos estão igualados. Internet e computador são símbolos de um campo desconhecido para o casal. O que será que não está funcionando nesse casamento? Como se retoma a conexão? É quando Philippe estimula Caroline a ir às aulas de informática do clube e aprender coisas novas. Parece entender que uma nova experiência pode reconectar a relação deles.

Parisi (2012) menciona os problemas de um casamento que está num estágio de simbiose semelhante à participação mística, presente nos estados primordiais da vida. Ocorre quando um parceiro preenche todas as necessidades do outro e eles se relacionam como se fossem duas metades que não têm valor isoladamente. O problema é quando um dos parceiros se transforma e o outro não consegue manter a sintonia. A transformação certamente vai alterar a dinâmica do casal. Isso acontece em algumas fases de transição, como a crise de meia-idade que está sendo vivida por Caroline: o corpo sofreu transformações, as filhas estão casadas, a amiga faleceu, ela deixou de trabalhar. Tudo isso faz com que Caroline, para sair da crise de transição, tenha que rever os aspectos de sua personalidade que foram negligenciados, visando promover uma integração.

O distanciamento do casal é observado na cena em que eles vão receber amigos para jantar. De saída para o trabalho, ele lembra que receberão visitas à noite, chamando atenção dela para o fato de o amigo não pode comer sal e gordura.

Ela passa a tarde degustando vinho com o pessoal do clube. A caminho de casa, para em um quiosque de praia e leva pizzas para o jantar. Philippe fica bem decepcionado, mas ela parece nem se importar. Com os amigos, ela continua bebendo e não consegue prestar atenção na conversa. O marido reclama que não consegue se sentir confortável servindo vinho com linguiça para os amigos. Ela vê um recado de Julien no celular e, impulsivamente, inventa uma desculpa e sai correndo levando uma garrafa de vinho.

No dia seguinte ela acorda e de camisola azul, vai ao balanço do jardim. Ele diz para ela descer pois o balanço pode não aguentar seu peso, ela pergunta se “está escrito que é proibido para velhas?” Aqui é evidente a falta de sintonia. Mesmo estranhando as atitudes da mulher, ele demonstra se importar com ela. Como adolescente apaixonada, que parece querer viver seu momento de rebeldia sem interferências, sem críticas do senex. A ideia de ir brincar no balanço de camisola é uma atitude pueril, brincalhona, que causa desconforto no marido por ser irresponsável também.

O encantamento com Julien

O primeiro encontro entre Caroline e Julien acontece na aula de informática. “Só vim porque quero aprender a resolver um problema na minha internet.”, ela diz. Julien dá umas dicas sobre conectar os cabos para fazer a internet da casa dela funcionar e aconselha desligar e ligar tudo de novo. É como se fosse preciso começar tudo outra vez. Quando ela está saindo, Julién a interpela e diz que está com um dente inflamado. Ela cuida de seus dentes, ele a convida para almoçar em seguida. Poder tratar os dentes do professor a faz se sentir competente e autônoma novamente. Durante o almoço, ela conta que está aposentada e que não sabe o que fazer com tanto tempo livre. Ele pergunta se ela não se interessa em trabalhar no serviço social, mas ela se recusa, dizendo que não é só porque está desocupada que precisa fazer serviço humanitário. Ela começa a listar as coisas que gostaria de fazer, entre elas: visitar os Castelos do Loire, ler o “O segundo sexo”, tirar habilitação náutica, aprender a jogar xadrez, escrever suas memórias, aprender a usar a furadeira.

Nota-se que todas as atividades são masculinas, predominantemente yang. Ela tem necessidade de estar ocupada, evitando refletir sobre si própria. Fica uma impressão de que tudo deve ser muito planejado, implicando numa desvalorização inconsciente dos aspectos femininos de sua psique. A atividade assistencial, algo mais feminino, é rejeitada de maneira taxativa. Na lista há também uma um evidente apego à intelectualidade e às atividades que envolvem raciocínio, direção e controle.

Julien brinca ao perguntar se ela se interessaria também pelo “primeiro sexo”. Você está me paquerando? Ela indaga. Impulsivo, ele a beija. A passagem do “segundo para o primeiro sexo” pode ser entendida como uma proposta de volta ao desejo sexual mais primitivo, sem o verniz da filosofia feminista de Simone de Beauvoir, autora do livro “O segundo sexo”. Começa a chover forte e os dois correm para o carro. A chuva, como um sinal dos céus, aumenta a proximidade dos dois em um abrigo seguro. Dentro do carro estacionado na orla, o clima entre eles esquenta, mas a chuva passa e, com a volta da claridade, os dois ficam muito expostos diante das pessoas que passam. Ela retoma o controle da situação e eles vão embora.

Na banheira de sua casa, ela saboreia as lembranças da tarde quando as filhas entram no banheiro conversando, sem sequer bater na porta.

O demorado banho de banheira vai além de uma simples limpeza do corpo. Há um sentido religioso no banho, uma transformação. É um rito de passagem para uma nova etapa, como é o caso, por exemplo, do banho do batismo cristão que celebra a entrada no mundo espiritual. Também há algo de erótico no banho, quando a água quente envolve todo o corpo, trazendo relaxamento e o contato com a própria sensualidade. Caroline parece se preparar para viver os prazeres do corpo, para retomar o contato com seu lado feminino mais primitivo.

Os encontros com Julien são intensos. Bebem vinho, fumam, conversam, dão risada e fazem amor em lugares diferentes. A vitalidade e o desprendimento de Julien encantam Caroline. Ele faz o que tem vontade, entrega-se às emoções, ao desejo, sem preocupação. Aqui se percebe a projeção do animus, que acontece no momento do reencontro com o sexo oposto. Caroline projeta seu ideal masculino em Julien, um homem que ela só conhece superficialmente, atraída pela beleza e pelo fato de ele ser bem mais jovem que ela. Sobre este tipo de paixão, Sanford (2002) explica que, encantar-se com alguém que sequer conhecemos é sentir-se atraído por uma imagem dos deuses que habitam nossa própria alma. O outro apenas recebe essa projeção divina que, na verdade, é o ideal da própria pessoa. O autor segue dizendo que o amor real só acontece quando uma pessoa conhece a outra e preocupa-se com ela.

Julien traz para Caroline a possibilidade de transgressão. Há uma cena que eles jantam em um restaurante e entra um casal conhecido. Julien ri e não acredita que ela o levou em um lugar que costuma ir com o marido. Ele diz que ela gosta de viver perigosamente e ela propõe que eles fumem lá fora. Como adolescentes, saem correndo pela rua sem pagar a conta e namoram no carrossel à beira da praia.

Aos poucos ela começa a notar alguns detalhes que a desagradam: a casa dele está sempre uma bagunça, ele não sabe reconhecer um bom vinho, não a espera para começar a comer. Enquanto ela fala, Julien se distrai numa rede social no computador. Também percebe que o moço é um conquistador, que namora várias mulheres ao mesmo tempo. Sente-se insegura e questiona Julien sobre o real interesse dele. Ele diz que está com ela simplesmente porque aconteceu e que ele nem pensa muito nisso. Quando Caroline conta que seu marido já sabe que eles têm um caso, ele não parece se preocupar. Irritada, o acusa de não se importar com ela porque para ele as mulheres são todas substituíveis, permutáveis. Julien responde: “Eu tento fazer o melhor. Desculpe, eu sou só diversão.”

A decepção com Julien, a conscientização de seus defeitos como homem comum faz com que ela se dê conta de que o amante não era o que ela imaginava. Ela começa a perceber que a relação não é de amor e sim uma paixão pela energia e vitalidade que o amante traz para sua alma. Este é o momento de recolher a projeção e lidar com os aspectos do animus, até então inconscientes.

O acolhimento do grupo

No clube, Caroline integra-se ao pessoal, envolve-se em várias atividades, incluindo uma peça de teatro. Na praia, as mulheres falam dos sinais do envelhecimento. De maneira humorada, comentam como foi a primeira vez que foram chamadas de senhoras, do surgimento dos cabelos brancos, a primeira blusa sem decote, o primeiro fracasso sexual.

Um amigo do clube conta a Caroline que perdeu esposa com câncer de mama. Ela lembra da melhor amiga que morreu em decorrência do mesmo mal. É uma situação que faz com que ela entre em contato com a crueldade da doença que mutilou a amiga em seu aspecto mais feminino: as mamas. Caroline parece sentir na pele a fragilidade de ser mulher. O envelhecimento traz a necessidade de descobrir outras possibilidades, de se renovar. “Sinto muita falta dela”, ela diz.

Pela primeira vez ela encara a dor pela perda da amiga. Na presença dos colegas do clube sente-se confortável para demonstrar sua fragilidade. Caroline revela suas inseguranças ao atender os pacientes. Diz que colocava as luvas, olhava para longe e dizia ao paciente: “vai dar tudo certo”, como se falasse com ela mesma. Começa a notar que as pessoas ali também passaram por situações difíceis. Já não se sente tão só. Está mais relaxada, emociona-se, ri de si mesma e parece mudar a imagem estereotipada que tinha sobre o envelhecimento. Guggenbühl-Craig (1980) menciona que tudo o que somos vem da experiência, da humanização do arquétipo. Não se pode compreender o arquétipo de modo racional. Conviver com outras mulheres mais velhas permite a ela viver seus aspectos “senex” sem seus antigos preconceitos.

As colegas já haviam percebido seu caso com Julien e comemoram o fato de ela ter conseguido conquistar um homem mais novo, como se se vingassem de todos os homens que abandonam sua mulheres por outras mais jovens. Uma delas, casada há oito anos, fala que antes do atual marido vieram outros. Caroline pergunta se agora vive uma história de amor ou de sexo e ela responde: “os dois, claro!”. A pergunta de Caroline evidencia seu conflito interno: será que ela pode ter amor e sexo reunidos no mesmo relacionamento?

De volta ao casamento

Na praia, Caroline vê o neto empinando pipa fica feliz ao constatar que construiu uma bela família. Conversando com as filhas, ela dá o cinzeiro que fez no clube para uma delas, diz que é feio, mas foi feito com amor. Quando conta que tem um amante bem mais novo, a filha é compreensiva e chega a dizer que só não tem um também porque não tem tempo e nem a coragem da mãe. Aqui se nota um respeito muito grande pela busca de felicidade da mãe. Pode-se imaginar que Caroline, mesmo com dificuldades em demonstrar suas emoções, tenha sido uma boa mãe, a ponto de sua filha receber sua confissão com tanta tranquilidade.

Em casa, leva chá com mel para o marido resfriado e pergunta se ele não pode tirar uns dias de folga. Caroline sugere uma viagem juntos, dizendo que gostaria de conhecer a Islândia. Ele diz que não há o que fazer lá, cortando a conversa. Fica pensativo e logo depois pergunta se ela lembra o que estavam fazendo em 1978. Quando ela diz que não, ele responde: “Amor. O tempo todo, sem parar. Não lembra? Era bom. Fico imaginando se a gente não poderia tentar de novo”. Eles fazem amor e no final ele conta que sabe de seu caso com Julien. Diz que ela deixou muitas pistas para que ele descobrisse: baseados no carro, maquiagem espalhada, noites com sua amiga depressiva, o jantar no restaurante.

O fato dela não ser discreta simboliza o quanto ela gostaria que o marido descobrisse a traição e que se transformasse junto com ela. Ainda na cama com Philippe Caroline comenta que passou para ver o cargo de dentista que ele havia sugerido. Diz que vai parar de ir ao clube e que rompeu com Julien. Notando seu esforço para tentar retomar o casamento, ele comenta que está velho demais para lutar por ela e para tentar reconquistá-la.

Os dias se passam com trocas de frases incômodas, de um lado ao outro. Confusa, ela parece querer recuperar seu casamento, mas ainda não tem certeza se a relação vai sobreviver às transformações trazidas por sua infidelidade. Nenhum dos dois parece saber como retomar a relação, agora que Caroline se transformou.

Caroline ainda faz uma última tentativa de apostar na relação com Julien e programa um final de semana romântico na Islândia mas no aeroporto desiste de viajar e rompe definitivamente com Julien. Ao lado do aeroporto, hospeda-se em um pequeno hotel e chama Philippe. Quando ele chega lá, ela diz: “eu sei que o quarto é muito simples e não tem muitos pontos turísticos aqui por perto”. E ele responde: “Você me acostumou com coisa melhor. A última vez que você fugiu foi para Paris, se me lembro bem...” Ela diz que também está ficando velha. A cumplicidade entre eles fica evidente com a troca de olhares. A menção ao envelhecimento já aparece com mais humor e menos dor. Ela está comendo bolacha com Philippe, da mesma forma que estava com Julien, no primeiro encontro. Só que agora sente-se mais à vontade, de pijama, no refeitório de um hotel simples.

Depois de passear pela orla, não conseguem entrar no quarto porque a porta foi trancada com a chave dentro e não há ninguém para ajudar. Voltam para a praia e conseguem carona para casa na caçamba de um caminhão. Como dois adolescentes sem juízo, os dois se protegem do frio abraçados enquanto o dia amanhece. Interessante lembrar da imagem de Caroline no início da história, de salto alto e coque, em contraste com ela de pijama e cabelos ao vento, na caçamba de um caminhão de obras. É o afrouxamento persona de Caroline, que funcionava como defesa de seus aspectos mais frágeis e a impedia de demonstrar suas emoções. A dentista poderosa e autoritária dá lugar a uma mulher despojada e feliz ao ser abraçada e protegida pelo marido. A transformação vivida por Caroline, depois da experiência com Julien, permite que ela sinta a vida sem tantas armaduras.

O tempo passa e Caroline aparece feliz na praia, com o marido Philippe e os amigos do clube. Eles conversam sobre entrar no mar e Philippe diz que tem medo mas afirma que entra junto, se ela topar. Ela diz que não vai, mas ele insiste. Enquanto eles se abraçam e se beijam na praia, ele a puxa para o mar. Rindo, eles caem no mar de roupa. Finalmente, Caroline entra no mar, na totalidade, no inconsciente. Durante o filme ela passa o tempo todo na praia, no limiar entre o mundo consciente e o desconhecido. Com a proteção do marido, e também com medo, ela entra no mar e se expõe às incertezas das ondas.

Guggenbühl-Craig (1980) ressalta que um casamento de individuação é aquele em que acontece o encontro dialético com o parceiro, mesmo quando as coisas se tornam difíceis. Ainda que haja conflito, o casamento de individuação é dinâmico, permeável às transformações. Este foi o caminho percorrido no casamento de Caroline e Philippe. A ampliação da consciência vai além de retomar o casamento, transformado após a infidelidade e envolve a percepção do quanto estavam traindo seus si-mesmo ao manter uma relação acomodada e sem vida.

Considerações finais

Casada há muitos anos, ela se apaixona por um homem que acabou de conhecer. Com o casamento desgastado, a nova paixão traz a promessa de novas emoções e dias mais intensos.

No filme, Julien apresentou Caroline para sua própria alma, a conscientizou de sua unilateralidade, polarizada na racionalidade e nos aspectos negativos do envelhecimento. Ela se apaixonou pelo o que faltava nela, projetado no amante. E só depois disso pode integrar estes novos elementos à sua psique. Ela descobriu suas potencialidades inconscientes, escondidas pela identificação com a persona rígida e autoritária, que mantinha na sombra os aspectos femininos desvalorizados por ela. Mais leve e despojada depois da relação extraconjugal, ela caminhou em direção ao si-mesmo e voltou para seu casamento mais consciente de seus desejos e de suas possibilidades.

O modelo de casamento de Caroline permitia diálogo e talvez por isso é que ela pôde compartilhar a sua infidelidade com o marido. Isto foi um fator determinante para o crescimento do casal. A juventude de Julien fez com que ela integrasse emoção e sensualidade à sua vida, levando assim para o marido outras possibilidades de relacionamento. A cena em que Philippe lembra o quanto eles gostavam de fazer sexo no início do casamento revela o quanto ele também sentia falta da vitalidade dela. Sua crença de que o envelhecimento fosse um processo de aniquilamento da libido também havia contaminado Philippe.

O envelhecimento passou a ser visto de uma maneira construtiva, aproveitando toda sabedoria da vida e ressaltando a intimidade conquistada ao longo dos anos de parceria. Eles mantinham um relacionamento em que cada um podia exercer sua individualidade, em convivência harmoniosa.

A aposentadoria e a morte da amiga foram os eventos desencadeadores da que que alterou o equilíbrio de Caroline. Pode-se dizer que ela foi fiel ao seu processo de individuação buscando se conhecer e crescer na relação com Julien, mesmo que isso significasse voltar a ver sentido no seu antigo relacionamento com Philippe, agora transformado.

No campo social, as amigas do clube adotaram uma postura de não julgá-la, entendendo que o casamento passa por crises e a traição não é motivo de condenação implacável. Já as funcionárias do clube ficaram perturbadas com o caso entre Caroline e Julien, mais por inveja de sua beleza aos sessenta anos, que por uma questão de moralidade.

Caroline recuperou a leveza adolescente, descobrindo que a vida não precisava ser levada tão a sério. Arriscou-se criando desculpas para o marido, dirigindo alcoolizada, fumando maconha, fazendo amor no depósito, aguentando as várias namoradas de Julien.

A infidelidade ajudou Caroline a rever sua rigidez, sua intelectualidade e se reinventar a partir de outro ponto de vista: descobrir o seu próprio jeito de ser, aproximar-se de seu si-mesmo.

Quando o outro é desvendado pelo ego consciente, quando se separa a projeção do que é esperado na realidade, os elementos do animus deixam de ser projetados no parceiro para serem integrados à psique. Ao encarar o envelhecimento de forma mais otimista, Caroline ficou mais alegre e o apaixonamento por Julien enfraqueceu. Quando a paixão acaba, dois são os caminhos: ou se separa porque, com o recolhimento das projeções, o outro deixa de parecer interessante, ou se permanece unido, transformando a paixão em amor recíproco, no qual ambos conseguem ver as qualidades do outro, sem tanta projeção. Com a desidealização de Julien, Caroline retomou a relação com Philippe que, embora não fosse perfeita, tinha a cumplicidade e o respeito, próprios do amor recíproco.

Sobre a retomada do casamento, Hillman explica que depois da traição, ou seja, depois que se deixou o Éden é difícil se restabelecer a confiança primordial. O relacionamento que vivencia uma infidelidade tem que recomeçar por um ponto totalmente diferente, em que se tenha consciência que as promessas cabem só até certo ponto e que não se pode prever ou controlar todos os acontecimentos da vida, com o objetivo de proteger o casamento. É preciso lidar com as transformações a cada dia, refazer as alianças e renovar a vontade de continuar juntos porque a vida é imprevisível. Como diz Hillman: “Tal perdão é um perdoar que não é um esquecer, mas a lembrança do erro que se transforma, quando inserido em um contexto mais amplo, ou nos termos que Jung coloca, o sal da amargura transformado no sal da sabedoria.” A sabedoria é a ampliação da consciência de conteúdos do si-mesmo, indispensável ao processo de individuação. Fazendo referência à função da infidelidade no processo de individuação, Carotenuto afirma que é difícil sustentar a contraditoriedade da existência e administrar o paradoxo que se estabelece entre a liberdade absoluta e o controle do rio da vida.

Caroline se transformou com a experiência da relação extraconjugal, mesmo que o caminho percorrido por ela tenha trazido uma mistura de prazer e sofrimento. Como diz Hillman, não há traição pior que trair a si-mesmo, deixando de passar pelas experiências inerentes ao processo de individuação, recusando-se a enxergar o que o inconsciente quer revelar.

Referências Bibliográficas

  • CAROTENUTO, A. Amar trair: quase uma apologia da traição. São Paulo: Paulus, 2011.

  • FERNANDES, C.S.A.(2015), A infidelidade conjugal feminina no cinema: Uma análise junguiana. Trabalho apresentado como requisito para obtenção de título de Especialista em Abordagem Junguiana. COGEAE. PUC/SP. São Paulo.

  • FILME EM DVD – Os Belos Dias (Les Beaux Jours). Direção de Marion Vernoux. Imovision. França, 2013 (94 min)

  • GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O casamento está morto, viva o casamento! São Paulo: Símbolo, 1980.

  • HILLMAN, J. Estudos de psicologia arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.

  • JUNG, C. G. Tipos psicológicos, OC vol. 6. Petrópolis: Vozes, 2011

  • _____O Eu e o Inconsciente, OC vol.7/2. Petrópolis: Vozes, 2011.

  • _____Aion: Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo, OC vol. 9/2. Petrópolis: Vozes, 2011

  • _____O desenvolvimento da personalidade, OC vol.17. Petrópolis: Vozes, 2011.

  • PARISI, S. Amor e separação: reencontro com a alma feminina. São Paulo: Vetor, 2012

  • SANFORD, J. Os parceiros invisíveis: o masculino e o feminino dentro de cada um de nós. São Paulo: Paulus, 2002.

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